NOTÍCIA
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POLÍTICA E COTIDIANO
03/12/2024
Reconhecimento racial cresce entre a geração Z
O orgulho de jovens negros em dar continuidade a uma herança anscestral.
Foto: Reprodução/Luiz Ferreira
O último censo demográfico promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que a porcentagem de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas no Brasil é de 55,5%. Superando o número de pessoas autodeclaradas brancas pela primeira vez desde 1872, esse dado reflete um fenômeno social de reconhecimento racial, já que não se trata apenas de um aumento na quantidade de nascimento de bebês com traços negros. Além disso, também existe a considerável a relação com o recente reconhecimento étnico-racial da negritude para além das características físicas.
“A descoberta de ser negra é mais do que a constatação do óbvio. [...] Mas também é, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.” (Trecho de Neusa Santos Souza em sua obra “Tornar-se Negro”)
Esse processo de “tornar-se negro”, estudado por Neusa Santos Souza, apesar de ser uma experiência particular para cada pessoa, tem se tornado cada vez mais acelerado para os jovens. Em conversa com a Revista TimeZ, o jornalista, doutor em psicologia e pesquisador na área de juventude, relações raciais e epistemicídio Bruno Vieira, defendeu que essa descoberta de si tem sido diferente para a geração Z pois permite uma consciência racial bem elaborada mais cedo. O especialista explicou que isso ocorre graças às novas dinâmicas de comunicação com as redes sociais e também por causa da implementação de políticas públicas para a promoção da igualdade racial iniciada em 2003.
“Toda e qualquer descoberta de si tem que, necessariamente, levar em consideração não só o contexto onde a pessoa se insere, mas também as relações, as dinâmicas sociais e culturais. A geração Z também é fruto dessas políticas públicas, como a política de cotas para alunos e professores e a política de bônus nas universidades. Medidas essas que não são dissociadas, né?”
A negritude dentro das universidades
A estudante Paulyane Oliveira ingressou na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) por meio da política de cotas e reconhece uma maior valorização da negritude em comparação com o ambiente escolar, mas também ressalta que ainda é necessário democratizar o ambiente acadêmico de maneira mais ampla.
“Assim que eu entrei na universidade, no curso de serviço social, pude ter contato com um debate étnico-racial de maneira mais aprofundada, embora eu também tenha percebido que ainda há um contraste de público muito grande nas universidades públicas, né? Eu ainda me deparei com pessoas muito elitizadas e com poucas representações de corpos negros. Mas ainda foi um processo muito massa, porque só assim a gente se dá conta do quanto nos é retirado na escola sobre a cultura afro. Lá, eu só tive contato com conteúdos de viés completamente colonizador e eurocêntrico. Foi só a partir da graduação que eu pude ter contato com as referências intelectuais brasileiras.”, relatou a jovem.
Apesar de ainda mostrar insuficiência em garantir um acesso pleno de jovens pretos à educação, o número de estudantes matriculados por cotas raciais em universidades públicas no Brasil, de acordo com o Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Inep, subiu de 14.262 em 2012 (ano da sanção da Lei de Cotas) para 52.256 em 2023, registrando um aumento de 266%.
As refs
O pesquisador também pontuou a importância das referências artísticas para a promoção da identidade negra. Vieira citou o hip-hop, o reggae e o funk como potências temáticas muito presentes na cultura periférica preta.
Além delas, os jovens também foram marcados pela explosão da cultura pop durante os anos 2000 e o surgimento de grandes nomes na indústria e na luta pela visibilidade racial.
Pedro Lucas Mendonça, estudante do ensino médio, contou que ter a artista Beyoncé como referência foi muito importante para ele, mas, mesmo assim, ainda sentia muita falta de figuras pretas nas televisões quando era criança.
“Assim como todo jovem negro, crescemos com poucas referências negras. Só que as histórias que eu consumia, que tinham como protagonistas pessoas brancas, se distanciavam muito da minha vivência. Eu acho que quando eu me senti mais representado na televisão foi na novela Carrossel. Muitos meninos negros tiveram o personagem Cirilo como primeiro exemplo de protagonismo, mas mesmo me sentindo representado, meus coleguinhas me atrelavam ao personagem em forma de bullying.”
Mesmo com as muitas dificuldades em ser uma criança negra, o jovem explicou que o apoio familiar foi fundamental para desenvolver sua identidade racial com autoconfiança.
“Me descobri muito jovem enquanto negro por ter minha mãe como exemplo em casa. Inclusive, eu e ela passamos juntos pela transição capilar. Foi um momento que nos aproximou muito e fez com que a gente se fortalecesse muito também. Ela é a pessoa que mais me inspirou a aceitar quem eu sou, aceitar o meu cabelo, aceitar as minhas raízes, aceitar minha história e ser feliz com isso.”
Foto: Acervo pessoal de Pedro Lucas Mendonça
Beleza negra
A transição capilar é um processo de afirmação e empoderamento que marcou a trajetória de muitos jovens durante o autodescobrimento racial. Bruno Vieira também explicou que esse processo colabora para reafirmar amplamente a beleza existente nos traços negros, desconstruindo o padrão de beleza europeu imposto.
“A beleza negra sempre esteve aí, né? A questão era que ela estava restrita a certos lugares. Por exemplo, nos anos 70 existiam os “Bailes Blacks”, que eram um lugar de afirmação da identidade, do black power, de promoção dessa beleza negra. Hoje em dia essa beleza não está mais restrita a esses bailes e as escolas de samba. Ela tá na rua, é perceptível e incontestável.”, articulou o especialista.
Carla Roberta, estudante de medicina veterinária, também passou pelo processo de transição capilar e mencionou que assumir seu cabelo natural a fortaleceu ainda mais em sua jornada por autoconhecimento.
“Sou adotada e meus pais são brancos. [...] Para minha mãe era muito difícil cuidar do meu cabelo cacheado, então eu comecei a alisar muito cedo, e por mim tava tudo bem. Só passei a me reconhecer assim por conta de um ex-namorado que me apresentou a Umbanda e de algumas amigas que me incentivaram a assumir meus cachos.”, contou a jovem.
Carla Roberta antes e depois da transição capilar / Acervo Pessoal
Fé e negritude
O ambiente religioso pode representar um lugar seguro para o fomento da identidade cultural negra. Segundo o estudo sobre juventude, práticas culturais e negritude de Nilma Lino Gomes (ex-ministra da Igualdade Racial), realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), participar e conviver dentro de grupos culturais que expressam a africanidade através de ritos, músicas, danças, entre outros, contribuem para o orgulho e afirmação da identidade negra dos jovens.
“Ver a cultura negra de perto, dentro de uma religião, foi tipo o estalar de dedos para eu me sentir pertencente a um lugar.” Concluiu Carla sobre sua experiência dentro da Umbanda, religião afro-brasileira.
A importância da ancestralidade
Vieira também apontou que a multiplicidade de referências contemporâneas dessa geração possui um importante lastro ancestral. Esse ambiente que hoje permite um debate racial um pouco mais desenvolvido é fruto de uma luta histórica, de uma caminhada coletiva.
“Acho que essa coisa do orgulho da geração Z é uma herança. É uma continuidade histórica dessa promoção de sentimentos de afetos que começam desde lá atrás e que chega nos dias atuais”, articulou o pesquisador.
Ele concluiu ressaltando a importância de consumir a liturgia racial daqueles que começaram a abrir os caminhos para essa retomada de si e do orgulho em ser afro-brasileiro.
Escrito por
Letícia Rodrigues
leticiarodrigues@revistatimez.com
@tciarodrigues